Passados 15 meses da publicação da Portaria nº 199 do
Ministério da Saúde do Brasil, são necessários alguns breves comentários sobre
o tema.
Foi em 30 de janeiro de 2014 que o Ministro Alexandre
Rocha Santos Padilha assinou a Portaria que, como diz seu artigo 1º:
"Institui a
Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, aprova as
Diretrizes para Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS) e institui incentivos financeiros de
custeio."
Primeiramente, é necessário reconhecer que é louvável que
o Estado Brasileiro tenha dedicado parte de sua atenção para a causa das
doenças raras. Óbvio que é uma obrigação do representante popular trabalhar
pelo povo. Porém, é um progresso que não pode ser analisado como se fosse algo
comum.
Na verdade, na sociedade em que vivemos, uma das
consequências da ausência de qualidade de vida é justamente não percebermos os
pequenos progressos e as pequenas vitórias que acontecem em nossas vidas.
Ora, estamos falando de doenças raras, e por esta
característica, o tema nunca foi objeto da atenção de gestores públicos.
De qualquer forma, no tocante especificamente à Portaria
199 em 30 de janeiro de 2014 é imperioso que estudemos a legislação, pois verdadeiramente
ela servirá de base para políticas públicas e até para legislação posterior.
Basicamente o sistema idealizado pelo Ministério da Saúde
pode ser visualizado no artigo 14 da Portaria que dividiu o atendimento em duas
modalidades distintas de serviços:
"Art. 14. O
componente da Atenção Especializada da Política Nacional de Atenção Integral às
Pessoas com Doenças Raras será composto por:
I - Serviço de
Atenção Especializada em Doenças Raras; e
II - Serviço de
Referência em Doenças Raras.
§ 1º O Serviço de
Atenção Especializada em Doenças Raras é o serviço de saúde que possui
condições técnicas, instalações físicas, equipamentos e recursos humanos
adequados à prestação da atenção especializada em uma ou mais doenças raras.
§ 2º O Serviço de
Referência em Doenças Raras é o serviço de saúde que possui condições técnicas,
instalações físicas, equipamentos e recursos humanos adequados à prestação da
atenção especializada para pessoas com doenças raras pertencentes a, no mínimo,
dois eixos assistenciais(...)"
Se fossemos entender por capacidade e expertise no
atendimento, basicamente o "Serviço de Atenção Especializada em Doenças
Raras" é mais simples do que o "Serviço de Referência em Doenças
Raras". Portanto, o "Serviço de Referência em Doenças Raras" é a
"menina dos olhos" do sistema. Não por acaso no "Serviço de
Referência em Doenças Raras" é onde estará o Médico Geneticista, por
exemplo.
A fiscalização do funcionamento será realizada por Gestor
Municipal e Gestor Estadual, nos termos do inciso IX do artigo 15 e artigo 31
da Portaria. Em outras palavras, a União deixará à cargo dos Estados e
Municípios o controle do cumprimento da Portaria pelos Serviços de Doenças
Raras. A União fará o financiamento do programa, mas não fará a cobrança: há
sério risco de perda de qualidade no atendimento neste ponto.
O máximo que a União fará é um monitoramento e uma
avaliação periódica, nos termos do artigo 31 da Portaria, que honestamente
acreditamos que não terá a frequência necessária para manter a qualidade do
sistema e inibir eventuais desvios de verbas, que somos informados com
frequência através da imprensa livre deste país. Fica a torcida para que
estejamos errados.
A Portaria aborda também como as instituições públicas e
privadas da área da saúde deverão proceder para pleitear a habilitação tanto
como "Serviço de Atenção Especializada em Doenças Raras", quanto como
"Serviço de Referência em Doenças Raras":
"Art. 17.
Poderão pleitear a habilitação como Serviço de Atenção Especializada em Doenças
Raras ou Serviço de Referência em Doenças Raras os estabelecimentos de saúde
que obedeçam aos seguintes requisitos mínimos:
I - possuam alvará
de funcionamento e se enquadrem nos critérios e normas estabelecidos pela
legislação em vigor ou outros que venham a substituí-la ou complementá-la,
precipuamente:
a) Resolução - RDC
nº 50/ANVISA, de 21 de fevereiro de 2002, que dispõe sobre o Regulamento
Técnico para Planejamento, Programação, elaboração e avaliação de projetos
físicos de estabelecimentos assistenciais de saúde e suas alterações;
b) Resolução - RDC
nº 306/ANVISA, de 6 de dezembro de 2004, que dispõe sobre o Regulamento Técnico
para o gerenciamento de resíduos de serviços da saúde; e
c) Resolução - ABNT
NBR 9050 - Norma Brasileira de Acessibilidade a edificações, mobiliário,
espaços e equipamentos urbanos - que estabelece critérios e parâmetros técnicos
a serem observados quando do projeto de construção, instalações e adaptações de
edificações, mobiliários, espaços e equipamentos urbanos;
II - disponham dos
seguintes serviços de apoio diagnóstico:
a) laboratório de
patologia clínica, anatomia patológica e de exames genéticos próprio ou
alcançável; e
b) laboratório de
imagem próprio ou alcançável; e
III - garantam,
junto à RAS, as necessidades de internação (enfermaria e UTI) e cirurgia, que
terão seus fluxos regulados conforme pactuações locais.
Parágrafo único. Na
hipótese dos estabelecimentos de saúde de que trata o "caput" não
oferecerem, dentro de sua estrutura física, as ações e serviços necessários
para o cumprimento dos requisitos mínimos para habilitação como Serviço de
Atenção Especializada em Doenças Raras ou Serviço de Referência em Doenças
Raras, estas ações e serviços poderão ser formalmente referenciados e
contratualizados.
Art. 18. Além dos
requisitos mínimos de que trata o art. 17, para pleitear a habilitação como
Serviço de Atenção Especializada em Doenças Raras, o estabelecimento de saúde
deverá cumprir os seguintes requisitos:
I - possuir equipe
assistencial composta, no mínimo, por:
a) enfermeiro;
b) técnico de
enfermagem; e
c) médico
responsável pelo Serviço de Atenção Especializada em Doenças Raras com
comprovada experiência na área ou especialidade; e
II - contar com um
responsável técnico médico, registrado no Conselho Regional de Medicina,
devendo assumir a responsabilidade técnica por uma única unidade habilitada
pelo SUS.
Parágrafo único. O
responsável técnico de que trata o inciso II poderá atuar como profissional em
outro serviço habilitado pelo SUS.
Art. 19. Além dos
requisitos mínimos de que trata o art. 17, para pleitear a habilitação como
Serviço de Referência em Doenças Raras, o estabelecimento de saúde deverá
cumprir os seguintes requisitos:
I - possuir equipe
assistencial para cada grupo dos Eixos de que trata o art. 12 composta, no
mínimo, por:
a) enfermeiro;
b) técnico de
enfermagem;
c) médico com
título de especialista na área da especialidade que acompanha, registrado no
Conselho Regional de Medicina e/ou comprovação de atuação na doença rara
específica por pelo menos 5 (cinco) anos;
d) médico
geneticista;
e) neurologista;
f) pediatra (quando
atender criança);
g) clínico geral
(quando atender adulto);
h) psicólogo;
i) nutricionista
(quando atender erros inatos do metabolismo); e
j) assistente
social; e
II - contar com um
responsável técnico médico, registrado no Conselho Regional de Medicina,
devendo assumir a responsabilidade técnica por uma única unidade habilitada
pelo SUS.
Parágrafo único. O
responsável técnico poderá fazer parte de equipe mínima assistencial, desde que
tenha título de especialista na área da especialidade que acompanha e/ou
comprovação de atuação na área por pelo menos 5 (cinco) anos para uma das
doenças raras acompanhadas pelo Serviço de Referência em Doenças Raras."
Entretanto, pergunta-se: todas as instituições que cumprirem
os requisitos, conseguirão a habilitação? São critérios objetivos ou haverá
decisão política envolvida nesta habilitação?
Essas perguntas são realizadas, pois devemos levar em
consideração que o Poder Público fará investimentos mensais nestas instituições
que conseguirem a habilitação. Senão vejamos os artigos 22 e 23 da Portaria:
"Art. 22. Fica
instituído incentivo financeiro de custeio mensal para as equipes profissionais
dos estabelecimentos de saúde habilitados como Serviços de Atenção
Especializada em Doenças Raras.
§ 1º O incentivo
financeiro de que trata o "caput" possuirá o valor de R$ 11.650,00
(onze mil seiscentos e cinquenta reais) por equipe.
§ 2º Quando houver
a habilitação de mais de um Serviço de Atenção Especializada em Doenças Raras
dentro do mesmo estabelecimento de saúde, o valor de que trata o § 1º será
acrescido de R$ 5.750,00 (cinco mil setecentos e cinquenta reais) por serviço
excedente, destinado à inclusão de mais 1 (um) profissional médico por serviço.
Art. 23. Fica
instituído incentivo financeiro de custeio mensal para as equipes profissionais
dos estabelecimentos de saúde habilitados como Serviços de Referência em
Doenças Raras.
§ 1º O incentivo financeiro
de que trata o "caput" possuirá o valor de R$ 41.480,00 (quarenta e
um mil quatrocentos e oitenta reais) por equipe."
Portanto, é importante que analisemos como o Poder
Público concederá a habilitação para funcionamento, pois há muito dinheiro público
envolvido.
O repasse será realizado pelo Fundo Nacional de Saúde,
criado pelo Decreto nº 64.867 de 24 de julho de 1969, e vinculado ao Ministério
da Saúde.
A Fiscalização dos recursos financeiros será incumbência
do Conselho de Saúde, nos termos do artigo 27:
"Art. 27. Os
recursos financeiros transferidos serão movimentados sob fiscalização do
respectivo Conselho de Saúde, sem prejuízo da fiscalização exercida pelos
órgãos do sistema de controle interno do Poder Executivo e pelo Tribunal de
Contas da União conforme disposto no art. 3º do Decreto nº 1.232, de 30 de
agosto de 1994."
Fica a esperança de que o Conselho de Saúde tenha força
para exercer uma fiscalização firme e punitiva contra as entidades que
infringirem esta Portaria.
Diante de tantas nuances, questiona-se: qual é a razão da
existência e desenvolvimento desta Portaria?
Resposta: Melhorar a qualidade de vida e otimizar o
tratamento dos cidadãos acometidos com doenças raras e o acompanhamento de suas
famílias.
Resta saber se o modelo proposto é o ideal para se
alcançar este brilhante objetivo.
A opção por utilizar estruturas hospitalares prontas, que
serão apenas adaptadas por seus gestores para aquisição da habilitação como
"Serviço de Atenção Especializada em Doenças Raras" ou "Serviço
de Referência em Doenças Raras" é acertada: melhor e mais barata a
adaptação do que já existe, do que construir novo. Sem falar que o paciente já
está adaptado ao local do hospital em sua cidade.
Porém, uma lacuna gravíssima da Portaria é no tocante aos
medicamentos, ficando restritos aos artigos 24, 37 e 41, uma rasa abordagem do
tema:
"Art. 24. Fica
instituído incentivo financeiro para custeio dos procedimentos dispostos no
anexo III, a serem incorporados na Tabela de Procedimentos, Medicamentos e OPM
do SUS para fins diagnósticos em doenças raras, realizados pelos Serviços de
Atenção Especializada em Doenças Raras e Serviços de Referência em Doenças
Raras.
(...)
Art. 37. Os
medicamentos e as fórmulas nutricionais incorporados pela CONITEC e constantes
dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas para os cuidados das pessoas
com doenças raras serão objeto de pactuação tripartite no âmbito da assistência
farmacêutica e dispostos em atos específicos.
(...)
Art. 41. Ficam
incluídos na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e
Materiais Especiais do SUS os procedimentos referentes à assistência às pessoas
com doenças raras no SUS, conforme disposto no Anexo III."
O que queremos dizer é que a compra, a logística de
distribuição, os critérios de prioridade no recebimento, etc, referentes aos
medicamentos foram deixados de lado, perdendo o Ministério da Saúde uma
excelente oportunidade de auxiliar de forma direta os pacientes de doenças
raras.
Desnecessário lembrar que a maioria das doenças raras tem
cura difícil ou até inexistente, e apenas o medicamento mantem o paciente com
qualidade de vida, ou, simplesmente, mantem o paciente com vida.
Aguardemos ainda a assimilação da novidade pelo sistema
de saúde brasileiro para, dentro de algum tempo, conseguirmos analisar o que
deu e o que não deu certo, segundo o que foi idealizado pela Portaria e segundo
o que era esperado por quem convive com uma doença incomum.
Gustavo Marchiori
Advogado com Pós-Graduação em Direito Público
e Secretário da Associação Brasileira de
Portadores de Angioedema Hereditário (abranghe)
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