Revista brasileira de alergia imunopatologia
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______________________________________________________________________Editorial
Angioedema hereditário:
busca por melhor diagnóstico
Luisa Karla P. Arruda1, Maria Fernanda Ferraro2
O angioedema hereditário (AEH) é uma doença rara,de herança autossômica dominante,caracterizada por episódios recorrentes de angioedema facial, genital ou periférico,sem urticária, e/ou dor abdominal secundária a edema intra-abdominal. Além disso, ataques ocasionais de edema de laringe durante o curso da doença podem ameaçar a vida. A semelhança clínica a condições alérgicas leva os pacientes com AEH a serem tratados com anti-histamínicos e corticosteroides, ineficazes nessa doença. A doença resulta da deficiência funcional e/ou quantitativa do inibidor de C1(C1-INH), anteriormente designado como inibidor de C1 esterase,que é o principal inibidor de proteases dos sistemas complemento, fibrinolítico e de contato1.
Há evidencias consistentes que identificaram a bradicinina como o principal mediador do aumento da permeabilidade capilar nas crises de AEH. Historicamente, a bradicinina foi descoberta pelo médico e cientista brasileiro Dr. Maurício Rocha e Silva em 1949, trabalhando com veneno de cobra jararaca no Instituto Biológico, SP, em colaboração com Wilson Beraldo e Gastão Rosenfeld2. Estudos subsequentes desenvolvidos por Rocha e Silva e Sérgio Ferreira na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo resultaram na identificação do Bradykinin Potentiating Factor,peptídeo do veneno de jararaca que causava inibição da ação de enzimas que degradam bradicinina3. Essas descobertas formaram a base para o desenvolvimento do Captopril no início da década de 1980, e depois de outros inibidores da Enzima Conversora da Angiotensina (ECA).
Apesar da contribuição fundamental dos pesquisadores brasileiros para o conhecimento das vias metabólicas das cininas, o AEH é uma doença ainda pouco conhecida em nosso meio. Em 1992 Solé, Leser e Naspitz4 descrevem as características clínicas e laboratoriais de 9 pacientes pertencentes a duas famílias distintas diagnosticados com AEH tipo II; em um estudo de 2004, Chagas et al.5 descreveram as características clínicas e a resposta ao tratamento em 10 pacientes com AEH, pertencentes a quatro famílias distintas; em 2009 Jorge et al.6 relataram um caso de associação de AEH com urticária crônica. Em 2007, Grumach et al.7 reuniram todos os casos de AEH diagnosticados nos principais centros de referência do Brasil, totalizando uma série de 120 pacientes. Considerando-se a prevalência média da doença de 1 caso para cada 50.000 habitantes, teríamos cerca de 3.800 casos de AEH na população brasileira, o que sugere ser o AEH subdiagnosticado em nosso meio. Registros europeus mostram que o tempo médio entre o início dos sintomas e o diagnóstico foi de 22 anos em 197, e de um pouco mais que 10 anos em 2005, reforçando a ideia de que o AEH é uma doença ainda pouco conhecida e diagnosticada em todo o mundo. A falha no diagnóstico pode ter sérias consequências, tendo em vista que o AEH é uma doença que traz um grande impacto na qualidade de vida dos pacientes e que pode ser altamente debilitante e até mesmo letal.
A maior parte dos pacientes com AEH são carreadores heterozigóticos de mutação no gene que codifica o C1-INH(SERPING1)1. Embora mais de 200 mutações no gene SERPING1 tenham sido identificadas em pacientes com AEH,não há correlação entre o tipo de mutação e a apresentação clínica e/ou gravidade dos sintomas, havendo ampla variabilidade desses parâmetros mesmo entre membros de uma mesma família que compartilham da mesma mutação genética. O gene SERPING1 tem 17 kb, está localizado em 11q12-q13 e apresenta 8 exons. Pacientes com AEH TipoI apresentam mutações distribuídas ao longo de todo o gene, resultando em proteina truncada ou estruturalmente alterada, que não é secretada de forma eficiente. Pacientes com AEH tipo II apresentam mais frequentemente mutações envolvendo o exon 8, que região que codifica o sítio ativo da proteína. Nesse caso, a proteína é secretada, porém apresenta atividade funcional reduzida. Mutações no gene do Fator XII foram descritas em um subgrupo de pacientes com AEH tipo III.
O diagnóstico de AEH é usualmente estabelecido por sintomas clínicos característicos e testes para componentes do complemento. Entretanto, análise sistemática de mutações no gene SERPING1 tem sido realizada em várias séries de casos de AEH. Recentemente, nosso grupo determinou pela primeira vez no Brasil a mutação genética que causa AEH em uma família com caso índice de AEH Tipo I. Trata-se de uma nova mutação, uma deleção de um único nucleotídeo citosina no exon 3 que resulta em interrupção prematura da síntese da proteína, impedindo a produção de C1-INH biologicamente ativo8. Embora a determinação da mutação no gene codificador do C1-INH não seja critério essencial para o diagnóstico de AEH, observamos que a análise genética em nosso estudo foi essencial para que pudéssemos fazer o diagnóstico de AEH de forma precoce (antes mesmo do aparecimento de sintomas) em 5indivíduos, o que indica que a análise genética de rotina representa uma valiosa ferramenta para a prevenção e tratamento adequado de crises agudas e potencialmente fatais de angioedema. Benefícios adicionais da análise genética incluem: permitir o diagnóstico de AEH em crianças menores de um ano de idade, uma vez que nessa faixa etária os níveis séricos de inibidor de C1 são variáveis, sendo comuns resultados falso-positivos e falso-negativos; e eliminar a preocupação de desenvolver a doença ou de transferir uma mutação genética para os descendentes, entre aqueles indivíduos membros de famílias de pacientes com AEH, mas que não apresentam a mutação.
O artigo de Giavinna-Bianchi e colaboradores,9 publicado neste volume, traz as diretrizes do diagnóstico e tratamento do angioedema hereditário. Esse documento, preparado por grupo de experts da Associação Brasileira de Alergia e Imunopatologia, tem o papel de contribuir para aumentar a suspeita e o conhecimento sobre AEH em nosso meio, e prover as recomendações atuais, baseadas em evidencias, para que os médicos brasileiros, especialistas ou não, possam
diagnosticar e tratar adequadamente os pacientes com essa doença. Avanços no tratamento do AEH contribuirão para a diminuição da morbidade e mortalidade e melhora da qualidade de vida desses pacientes.
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1. Professora Associada, Livre-Docente, do Departamento de Clínica Médica da FMRP-USP.
2. Médica Especialista em Alergia e Imunologia pela ASBAI. Doutora em Ciencias Médicas pela FMRP-USP.
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Referências
1. Bowen T, Cicardi M, Farkas H, Bork K, Longhurst HJ, Zuraw B, et al. 2010 International consensus algorithm for the diagnosis, therapy and management of hereditary angioedema. Allergy Asthma Clin Immunol 2010;6:24.
2. Rocha e Silva M, Beraldo WT, Rosenfeld G. Bradykinin, a hypotensive and smooth muscle stimulating factor released from plasma globulin by snake venoms and by trypsin. Am J Physiol
1949;156:261-73.
3. Ferreira SH, Greene LH, Alabaster VA, Bakhle YS, Vane JR. Activity of various fractions of bradykinin potentiating factor against angiotensin I converting enzyme. Nature 1970;225:379-80.
4. Solé D, Leser PG, Naspitz CK. Hereditary angioedema type II- a study of two families. J Investig Allergol Clin Immunol 1992;2(6):318-22.
5. Chagas KN, Arruk VG, Andrade MEB, et al. Angioedema hereditário: considerações sobre terapia. Rev Assoc Med Bras 2004;50(3):314‑19.
6. Jorge AS, Dortas SD, Valle SO, França AT. Hereditary angioedema and chronic urticaria: is there a possible association? J Investig Allergol Clin Immunol 2009;19(4):327-8.
7. Grumach AS, Correia AP, Valle S, et al. Hereditary angioedema (HAE) in Brazil: registry of 120 cases [abstract]. Mol Immunol 2007;44:3963.
8. Ferraro MF. Angioedema hereditário: estudo clínico e genético de uma família brasileira [tese]. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, 2010.
9. Giavina-Bianchi P, França A, Grumach A, Motta A, Fernandes
F, Campos R, et al. Diretrizes do diagnóstico e tratamento do angioedema hereditário. Rev Bras Alerg Imunopatol - 2011;33:241‑52.